Rever o passado é um exercício de embelezamento interessante no Portugal optimista. A História como “ciência” descritiva (ou interpretativa) dos factos passados é uma mirabolante concepção dos historiadores que, tal como todos os outros “peritos”, têm de justificar a sua existência inventando um “objecto” de estudo. Mas tal coisa não existe. “Facto real” e “facto histórico” são realidades completamente diferentes. O primeiro acontece algures no espaço/tempo (e morre entre as brumas da memória, canta a mocidade portuguesa, nos egrégios estádios de futebol). O segundo é uma elaboração feita sobre o primeiro consoante a paparoca ideológica que o momento exacto que vivemos exige. (A História não existe para elucidar o passado mas para dar um certo sentido ao presente adequado às ambições da classe dominante). No Portugal dos empresários miraculados por gestores milagrentos, propagandeados pela publicidade oficial como capazes de proporcionar ovas de esturjão beluga para todos, é imperativo glorificar o passado para levantar o moral. Quem dá o corpo ao manifesto na produção de riqueza (chamava-se vender a “força de trabalho” noutras ideologias) precisa de acreditar no esplendor de Portugal, que já foi, mas pode voltar a ser, se forem para o trabalho cantando e rindo, em vez de quezilando e reivindicando. Assim serão levados, levados sim, pela voz do patrão de som tremendo. Das turbas, clamor com fim, dependurados no andaime, torres e torres erguendo, para que a riqueza doire o céu de Portugal. Lá vamos, que o sonho é lindo! (Claro que o andaime e as torres são metáforas, para não fugir muito do jolie poema de Mário Beirão do Hino da Mocidade Portuguesa, e abrangem a generalidade da actividade humana assalariada, não quer dizer que Portugal seja um país de cabouqueiros. Na imigração, a passagem pelas obras é uma espécie de ritual de iniciação para o sucesso no estrangeiro).
Dourar a pílula é o mot d’ordre, no sentido deleuziano, da nossa sina contemporânea. A linguagem oficial não descreve o passado mas sim diz-nos como ele deve ser entendido e pensado. A ferramenta mais importante do historiador actual é o Paint Shop para retirar feiosas rugas da tez lusitana, (excepto para José Hermano Saraiva. Ex-historiador amador, reconvertido em agente de viagens, prefere o folheto desdobrável das bonitas e progressivas terras portuguesas). Hoje é vox populi que os barões assinalaram. Que tenha sido a Taprobana, Copacabana, a papa da Joana, pouco importa. O que interessa é a sensação de bafo quente no pescoço provocada pela ufana glória que detrás vem. Se tão poucos, tanto fizeram, nós, que somos mais alguns, conquistaremos o universo, com a breca!
Em Portugal respira-se um ar teúrgico que (saudavelmente) tem toldado a perspectiva dos acontecimentos. Por exemplo, é muito comum elogiar-se o sucesso popular das charlas televisivas de Vitorino Nemésio. Fala-se como se, quando começava o programa “Se bem me lembro”, o povo acorresse aos magotes para frente do televisor para beber tão prodigioso discurso. Nada mais errado. Isso diz-se agora. Naquele tempo, o palanfrório do escritor açoriano, não era entendido pela maioria das pessoas, não pela complexidade dos conceitos manipulados, mas por simples má dicção. Maior sucesso tinha as imitações feitas pelos Parodiantes de Lisboa, essas sim atraíam pessoas para junto do transístor. (Excluindo, os jogos de futebol, a única vez que o país parou em frente do televisor foi durante a transmissão da telenovela “Gabriela, cravo e canela”. No último episódio não se via vivalma nas ruas. Até os deputados da nação fecharam a Assembleia mais cedo para assistir ao empolgante desfecho da coitadinha do Nordeste). Outro ápice histórico retratado com tons sépia (da interpretação ideológica) é a queda do Cessna que transportava Sá Carneiro. Diz-se que uma onda de comoção percorreu o país de lés-a-lés quando Freitas do Amaral, de ar compungido, leu a notícia na RTP. Durante vários dias o povo chorou pelas cebolas do Egipto. Um carismático líder caíra do céu (as senhoras mais beatas acreditaram que ele para lá voltara). As lágrimas vertidas salgaram ainda mais o mar. Os choros incomodaram o sono dos deuses. As lamúrias ecoaram nas pedras da calçada. Enfim, uma tragédia quasi grega. Mas, de facto, grande parte da população festejou o esfanicar do primeiro-ministro nos telhados de Camarate, porque a sua permanência no poleiro prefigurava um ditadorzeco no horizonte. Na época, Sá Carneiro empenhava-se na eleição de um títere (Soares Carneiro) para a Presidência da República. Queria governar à sua maneira. Com certezas de líder esclarecido que sabe o que é melhor para o povo. Não seria igual ao mauzão do Salazar, mas perdemos uma oportunidade para testar que a História se repete. A primeira vez como drama, a segunda como comédia.
Intervalo para coroar mestre Ubu: Fernando Ulrich, presidente do BPI, quilovátio da banca, Roquefort da finança, viripotente marido, pai de truz e mais uma lista de qualidades enaltecidas por Paulo Teixeira Pinto nas reuniões do Conselho de Administração do Millennium bcp durante a falecida OPA. E também conhecido por ser um Tapperware atestado de boas ideias como aquela de baixar os salários (dos trabalhadores, não dos gestores) para espevitar a economia portuguesa. Há meses confidenciou aos jornalistas: “a minha filha levou-me a ver o Casablanca à Gulbenkian, já tinha visto, mas chorei para aí três vezes”. Pelo seu currículo é fácil adivinhar quando. Durante o genérico por não ver o seu nome nos créditos, quando Rick Blaine dispensa ao amor de sempre, Ilsa, os bilhetes de avião para Lisboa sem cobrar comissão e no genérico final, outra vez por não constar o seu nome. Um homem de ferro que chora, “co’os trezentos traques de Júpiter”, eis um bom rei para Portugal. Ubu roi!
Nunca é demais elogiar a iniciativa privada como oirichuva da nossa sociedade. O empresário, um herói sem collants nem capa, resolve problemas, ao contrário do gestor público que se limita a vadiar de carro de luxo. Só nos apoquentamos com a nossa precária situação porque não há coragem para ir até ao fim e privatizar tudo. Parafraseando um dichote popular “no privado é um descanso”. Se as esquadras fossem privatizadas erradicava-se o crime num estalar de dedos. Um patrão motivado para rentabilizar o seu investimento reduzia logo os custos do acto policial pondo os polícias a pagarem as balas e os tinteiros do computador. E, como os criminosos davam lucro, nem os “sei que pareço um ladrão” escapariam ao zelo do polícia privado. Outra área que beneficiaria das indiscutíveis vantagens do empreedorismo é obviamente a Justiça. Processos a engonhar anos a fio nos tribunais teriam os dias contados se os juízes trabalhassem à peça. Um empresário nas rédeas – após passagem pelo banco dos réus – aumentaria a produtividade com o seu know-how estabelecendo objectivos a cumprir, colmatando as deficiências das faculdades de Direito, que ensinam a folhear Códigos, mas não a trabalhar. E, por fim, quiçá, a área com mais impacto social porque a população portuguesa não vai para nova – a santa saúdinha. Privatizar os hospitais teria uma consequência imediata. Acabava com as mortes por doença. Continuaríamos a morrer mas saudáveis. Os privados são bons, mas não tão bons como Deus para alterarem o dia de entrada no cemitério. Tivemos esta semana uma lição de eficiência de ponta na Saúde quando Eusébio foi pagar 600 €, por dia, nos cuidados intensivos do Hospital da Luz. Recém-inaugurado com pompa e circunstância e Presidente da República e ministro, esta doença do mito da bola foi uma sorte para o marketing da instalação hospitalar, e para nós que observamos embasbacados máquinas de maravilhar, corredores não atravancados de macas e doentes felizes. O Director clínico José Roquette, com um especialista a tiracolo, respeitava a pontualidade que os telejornais antes exigiam aos políticos. Oito horas em ponto lá estavam eles a botar uma espécie de boletim clínico para sossegar o people. Assim, graças à eficácia da medicina privada ficamos a saber que as artérias que irrigam o cérebro do “pantera negra” estão entupidas e… mais espantoso ainda, que Eusébio tem cérebro.
Vivemos num bacanal contínuo. Quem não se organiza corre o risco de dançar o Vira-Vira dos Mamonas Assassinas (“roda, roda e vira, solta a roda e vem/me passaram a mão na bunda e ainda não comi ninguém”). Numa época onde as pessoas se dividem em, fumadores e fumadores passivos, mais vale preparar-se para uma cigarrada depois de uma barrigada de prazer, do que carpir mágoas no último degrau da escala social. Sigamos o modelo Eduardo Catroga. Ex-ministro das Finanças com obra feita (obra é obra, mesmo má), ganha uma pensão de 9 693 euros, mas não se coíbe de açambarcar tachos e mandar o seu bitaque sobre economia. Ou, então imitemos Joe Berardo que se recenseou e vai votar pela primeira vez na vida para ajudar um amigo de negócios. É bonito de ver. Um homem cumpre o seu dever cívico enquanto ajuda outro homem.
E, por fim, a luminosa ideia da EDP de adicionar 91 cêntimos na conta, durante os próximos dez anos, para reduzir o dito “défice tarifário acumulado”, encaixa como uma luva no coitus continuus do nosso admirável quotidiano novo. Dará satisfação (sexual, no sentido freudiano) por muitos e muitos anos. Quando decorrer o período para saldar o tal défice vão reparar numa coisa assaz bizarra. Entretanto, foram acumulados outros prejuízos, porque não está prevista a vinda a Portugal de uma fadinha com a sua varinha de condão para transformar abóboras em gestores. Daqui a dez anos os clientes da EDP (nessa altura pronunciado em espanhol) terão de pagar mais 91 euros, em cada factura, para tapar outro défice e assim sucessivamente. (Ah... já me esquecia. Os lucros continuarão astronómicos, valha-nos isso).