Pratinho de Couratos

A espantosa vida quotidiana no Portugal moderno!

sábado, outubro 24, 2009

Desbeiçar

O ócio é o pai afectivo da Humanidade. (O papá biológico é o
mercado de crédito americano). De papo pró ar desabrocharam-se as elevadas criações do espírito. Como a Arte, por exemplo. Marcel Duchamp ressulcou a via dolorosa para o Museu, aformoseando-lhe os quatro cantos, com os seus “ready mades”, objectos deslocados do Quotidiano para a Arte, (susceptíveis de reenvio da Arte para o Quotidiano, se acreditarmos, que Brian Eno urinou na “Fountain”). Também se alquimou de gaja. E, em 1963, pausou para uma partida de xadrez, com a modelo Eve Babitz, e confessava uns anos depois: “levo uma vida de rapaz de café”.
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Sornar compensa, e não há momento mais ocioso na vida de uma pessoa, que estudar numa Universidade. Entre 1864/67,
Nietzsche cursava Filologia em Bona, os dias alongavam-se no doce farniente, superabundava tempo para teatro, concertos e para a composição musical. Nessa época amanhou, (contra Wagner. Talvez, por Schumann), as suas liederBeschwörung”, (“Súplica”), tradução livre de Pushkin e “Verwelkt”, (“Murcho”), poema de Sándor Petöfi. Apesar da paixão, – escreveu ele: “a música proporciona agradável entretenimento e salva, cada um interessado nela, do aborrecimento” –, a sua gaia melomania definhou no poente em 1875 com “Hymnus an die Freundschaft (Hymn to Friendship)”.
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Na América, para matar o tempo, podiam entreter-se com a
Brooke Burke ou a Marisa Miller ou cantar “Mahna Mahna”, mas não! tinham que ser originais, então asseiam a sociedade para que os cidadãos cresçam livres.
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A instalação do
presidente Báráque no centro da Terra modifica os clichés sobre a raça negra. Empenhada na reconstrução, a Mattel lança a nova estética, os estereótipos para gerações futuras. As Barbies pretas, Grace, Kara e Trichelle, de lábios mais cheios, q.b., nada de exageros, cabelo encaracolado, mas não encarapinhado, esbranquiçam concepções ancestrais, encolhendo o fosso entre raças. Mas o problema é a avoenga herança. Lamentavelmente os Governos não incluem um Ministério da Verdade, como no “1984” de Orwell, para reescrever o passado, portanto os cidadãos mais íntegros têm de arrogar-se dessa tarefa. A Biblioteca Pública de Brooklyn decidiu rever as aventuras do viajado repórter de Hergé. Não embirraram por ele ser belga, país com uma instrutiva história em África, continente dos antepassados de Báráque, mas pelos desenhos de “Tintin no Congo” ofenderem os pretos e retiraram-no do acesso aos leitores.
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(Na
edição original de 1931, os pretos falavam à preto, respondiam com um respeitoso “yes master” e Tintin, na missão, dá uma aula de substituição, por doença do “Papa Sebastian”, sobre a pátria belga. Remando no fluxo da mudança política, Hergé expurgou o livro das cenas, historicamente datadas, de uma Europa colonial, sobre os colonizados, em 1946 e 1975).
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A solução de
banir livros não é novidade. Na América está mapeada, e eles são proibidos sempre por razões legítimas e válidas: “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury, porque um dos livros incinerados era a Bíblia; “As Aventuras de Huckleberry Finn” de Mark Twain, pela palavra “nigger” e descrição crua dos pretos no sul dos Estados Unidos; “Catcher in the Rye” de J.D. Salinger, pelo abuso dos insultuosos “fuck yous”; “Onde Está o Wally?” de Martin Handford, por se vislumbrar, naquele amontoado de gente, a parte lateral de uma mama e um pouco de mamilo. Limpar as bibliotecas e livrarias é um bom começo, mas a esfregona tem de atacar outros chãos, como os desenhos animados, que retratam pretos de beiçolas, carapinha, comedores de melancia e galinha. Os cidadãos rectos (e rectas cidadãs), das sociedades ricas, livres de exploração de pretos ou mascarrados, e cuja riqueza propicia muito tempo livre, têm a sagrada obrigação de esborcinar esta imagem afrontosa para o imperador do mundo.
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PS:
Woodstock – certo dia… o milionário herdeiro da Block Drug, John Roberts, e o licenciado em Direito, pela Universidade de Yale, Joel Rosenman, colocaram um anúncio nos jornais mais caretas da década de 60, o Wall Street Journal e o New York Times, expondo sentimentos pouco altruístas: “jovens adultos, com capital ilimitado, procuram interessantes, legitimas, oportunidades de investimento e propostas de negócio”. Responderam Artie Kornfeld, executivo da Capitol Records, e o promotor Michael Lang, sugerindo multiplicar o dinheiro com a construção de um estúdio em Woodstock. O negócio não avançou, mas trocaram-no por uma ideia genial: ganhar uma pipa de massa realizando um festival de três dias de arte e música, com bilhetes pré-comprados a 105 dólares (valor actual, na época eram 18 dólares e, na bilheteira, no próprio dia, 24 dólares). Lang, orçamentado com 180 mil dólares para contratar artistas, calculou que caberia 10 mil a cada um. Para desencadear a engrenagem, precisava de uma cenoura, um nome pesado da indústria musical, que atrairia os outros. Por sorte os Creedence Clearwater Revival assinaram pelos 10 mil dólares. (Jimi Hendrix não aceitou, e deu-lhe a volta por 26 mil, quando os Jefferson Airplane souberam, reclamaram, e Lang meteu-lhes a peta de que Hendrix tocaria duas vezes).
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Pretendiam vender 50 mil bilhetes e iniciaram negociações com Wallkill, Nova Iorque, mas o concelho da cidade aprovou uma lei contra a presença de hippies. Então alugaram a quinta de Max Yasgur, em Bethel, Nova Iorque, por 75 mil dólares, numa previsão de 50 mil pessoas, embora já tivessem vendido 150 000 bilhetes. Meio milhão de hippies convergiu para o local, esfumaram-se os meios logísticos de cobrança de ingressos, virando o concerto free. Os artistas honraram o
contrato. Alguns – Janis Joplin, The Grateful Dead e The Who – desconfiados da desorganização, exigiram pagamento adiantado antes de subir ao palco. As condições para o público também eram péssimas. Três morreram: um de apendicite (ou queda de andaime), outro de overdose, e um tipo de 17 anos, atropelado por um tractor, enquanto dormia num saco cama.
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A posteriori todos os gatos são dourados. E, decorridos 40 anos, a
fantasia aloja-se no imaginário. Gray Morrow e Gary Friedrich desenharam-lhe uma BD. O cinema lucrou com a cena hippie (e o filme “The Big Lebowski” esclarece a certidão de óbito: “a sua revolução terminou, Mr. Lebowski. Condolências. Os maltrapilhos perderam”). Renascem como heróis numa tournée ganhando mais um dólar. No entanto, Barry Melton, o Fish, dos Country Joe and the Fish resume: “quando me dizem que foi fantástico, sei que viram o filme e não estiveram no concerto”. Outros tiveram outra percepção. Jerry Garcia disse: “chovia pra caraças e eu estava a tripar (com um ácido checo), e vi bolas azuis de electricidade saltando, através do palco, e pulando para a minha guitarra”. O republicano Arlo Guthrie não se lembra népia do concerto apenas do percurso. E um heróico português, sempre ele, futuro ministro, nem mais, alvíssaras! alvíssaras! o Braga de Macedo, quuuaaase assistiu ao Woodstock.
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Zina Saunders, com 15 anos, fumava haxe, e recorda-se da festa da contracultura em etéreos desenhos, com essa idade, no século XXI, se houvesse um Woodstock, tuítaria ou blogaria como uma danada. A lista de mortos, dos músicos participantes no festival, já vai longa, todavia uma coisa não mudou. O casal, Nick e Bobbi Ercoline, na capa do disco triplo, ainda vive junto.
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Dois meses antes, dia 29 de Junho de 1969, acontecia no
parque Marcus Garvey, no Harlem, o Woodstock dos pretos. Uma série de concertos, misturando música e política, onde não faltou o inevitável reverendo Jesse jackson, realizada após dois assistentes de Malcolm X terem sido baleados (um morreu) e quando o Harlem era associado ao faroeste. Durante seis tardes de Domingo trezentos mil espectadores viram: Sly & the Family Stone (o único a repetir também Woodstock), Stevie Wonder, B. B. King, Mahalia Jackson, The 5th Dimension, Abbey Lincoln & Max Roach, Gladys Knight and the Pips, “Moms” Mabley, Pigmeat Markham etc. Hal Tulchin, produtor de televisão, filmou mais de 50 horas, que nunca saíram da caixa, pois só recentemente as coisas de pretos são comerciais (por enquanto existe a parte de Nina Simone). Os Panteras Negras, grupo de bons rapazes, – 21 membros foram acusados de querer comemorar o assassinato de Martin Luther King com bombas no Macy's, Bloomingdale's, Abercrombie & Fitch e outros grandes armazéns de Manhattan – encarregaram-se da segurança, porque a polícia de Nova Iorque recusou o encargo.
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Na sua actuação
Roebuck "Pops" Staples, das Staple Singers, disse: “assim, vão para a escola, crianças, e aprendam tudo o que puderem. Há uma oportunidade de um dia serem presidente dos Estados Unidos”.
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Os cristãos também têm o seu Woodstock. O
Creation Festival, com uma periodicidade anual, há 30 anos, dá música aos crentes, num ambiente saudável: recolher obrigatório, sem drogas, sem álcool e sexo, só depois de papel passado, e paga a côngrua do matrimónio. Na edição de 2008, Timothy Adams procurava esposa e lamentava-se de escassez neste mercado: “há muitos gajos à procura de mulher. É difícil encontrar uma mulher cristã, há tão poucas”. O último dia do festival dedica-se aos baptismos em massa no rio. Lily Ellerson, 12 anos, explica a sua consciente opção deste banho purificador: “senti que Deus estava aqui. Podia vê-lo, podia senti-lo à minha volta e pensei que queria dar-lhe todo o meu coração”. A sua prima, Emily White, sintetiza a ambiência: “sentimos, uau, que estamos no Reino de Deus, aqui e agora. Vivemos numa comunidade de 70 000 pessoas, sem as comodidades da electricidade ou água, e no entanto, toda a gente ama toda a gente, não ouvimos falar de roubos ou porradas. Vivemos realmente como Deus nos fez para viver”.
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No ano passado, os cristãos, brancos na sua grande maioria, lançaram-se aos leões de todos os géneros de piedosa música. Ajoelharam, rezaram, saltaram, dançaram, abraçaram-se perante os
Kutless cujo guitarrista, James Meade, 25 anos, foi salvo por Jesus, após anos de abuso em criança, cadeia por tráfico de droga, e quase morrer de intoxicação alcoólica, na festa de aniversário dos seus 17 anos; Barlow Girl; Sanctus Real; Group 1 Crew; Ayiesha Woods; Flyleaf; Inhale Exhale; Switchfoot; Thousand Foot Krutch; Future of Forestry; Superchick; Run Kid Run; Children 18:3; Family Force 5; Skillet; Worth Dying For; e outros batedores na porta do céu.
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A geração Woodstock é uma geração de falhados, como todas as posteriores e anteriores, engraxada com o brilho do marketing, engole-se, mas caído o pano, resta a voz de Cebe (
Linda Manz), no rádio do camião: “Destroy! Kill all hippies! Subvert normality!”, do genérico de “Out of the Blue” (1980), filme de Dennis Hopper. Exortação repetida pelos Primal Scream em “Kill All Hippies”.